segunda-feira, 2 de abril de 2012


Guilheme Arantes e a Amnésia do Pop
Sob O CEL #13
por Carlos Eduardo Lima
Houve um tempo, distante, em que as trilhas sonoras de novela eram parte importante da formação das pessoas que se interessavam por música. Víamos as novelas – que eram mil vezes mais interessantes do que o lixão que vai ao ar hoje em dia –, ouvíamos as músicas e comprávamos os discos. Eu tinha 10 anos em 1980 e já colecionava alguns títulos nacionais e internacionais como “Espelho Mágico”, “Dancing Days”, “Coração Alado”, “Saramandaia” e continuaria comprando, logo adquirindo “Baila Comigo”, “Água Viva”, “Os Gigantes”, “Pai Herói”. A diferença não estava só nas novelas, mas também nos frequentadores dessas trilhas, gente como Elton John, Genesis, Bee Gees, Alan Parsons Project, Chic, entre outros medalhões gringos. No terreno nacional, só consigo me lembrar da onipresença de Guilherme Arantes. O sujeito emplacava canções desde 1976, quando “Meu Mundo E Nada Mais” surgiu na trilha de “Anjo Mau”. Isso foi só o começo. Esse texto, no entanto, não é sobre as novelas e suas trilhas – que bem poderiam ser assunto um dia – mas sobre a importância da obra deste cantor e compositor, criminosamente esquecido pela imprensa musical nacional, essa interessante classe de pessoas com problemas de memória.
Guilherme sempre teve uma grande habilidade para a música pop de matriz anglo-americana. Nunca houve algum regionalismo ou mistura de estilo nacional em sua verve, apenas o idioma. Não duvido que Arantes seria um popstar mundial se fosse inglês. Pianista talentoso, cantor competente (sempre fez muito com a voz curta que tem), arranjador criativo, ele começou no Moto Perpétuo, grupo de progressivo paulistano, que hoje é mítico como as boas bandas prog nacionais desbravadoras devem ser. O Moto durou um ano (1974/75) e acabaria sem muito alarde. Seguindo uma tendência mundial, Arantes migrou do estilo para o pop refinado, cheio de nuances instrumentais e cuidados técnicos. Ele já havia decidido deixar a faculdade de arquitetura para trás e viver de música. Em um ano sua aposta renderia os frutos, até além do esperado. O sucesso nacional de “Meu Mundo E Nada Mais” o credenciou para novas trilhas sonoras, como a de “Duas Vidas”, novela de Janete Clair, que trouxe a bela “Cuide-se Bem”. Também foi assim com “Baile de Máscaras” em “Espelho Mágico”, “Amanhã” em “Dancing Days”, “Deixa Chover” em “Baila Comigo”, enfim, o homem não conhecia limites para emplacar hits.
Na virada dos anos 70/80, a Globo tentou ressuscitar os festivais musicais. Uma das memórias mais presentes é a participação de Guilherme Arantes no II MPB Shell, com “Planeta Água”. A canção foi aclamada pelo público e grande parte dos jurados e emplacou nacionalmente nas rádios. A letra falava de ecologia com leveza e pertinência, num tempo em que a preocupação com o meio ambiente era algo embrionário. “Planeta Água” ficou com a segunda colocação, perdendo para a chatíssima “Purpurina”, cantada por Lucinha Lins, alvo de uma vaia de dez minutos após a decisão ser anunciada. Arantes tocou “Planeta Água” e saiu ovacionado do Maracanãzinho lotado. Isso só o credenciou mais e mais para o patamar dos grandes compositores nacionais, sendo até requisitado por Elis Regina, que acabou gravando “Aprendendo a Jogar” e “Só Deus é Quem Sabe”.
Guilherme Arantes também era figura fácil no Cassino do Chacrinha, que, a partir de 1982, voltou para a Rede Globo. O programa iria se transformar na grande vitrine das bandas de rock nacionais em pouco tempo, fato que não prejudicou a frequência de aparições de Guilherme no elenco de atrações. Havia espaço para o pop rock melodioso do sujeito e novas canções como “Lance Legal”, “O Melhor Vai Começar”, “Pedacinhos”, “Fã Nº1″, “Cheia de Charme”, “Coisas do Brasil”, entre outras, grudassem inapelavelmente no ouvido popular brasileiro. O público do Teatro Fênix, local de gravação do Chacrinha, era composto por estudantes da rede pública do Rio de Janeiro e todas cantavam as músicas de Guilherme Arantes, mostrando que o alcance de suas canções era bem amplo, como deve ser o do artista pop por excelência. Pouco tempo depois, em 1987, viria um sucesso avassalador na carreira de Guilherme, incluído na trilha sonora da novela “Mandala”. Sem pedir licença, “Um Dia, Um Adeus” assaltou as paradas de sucesso e aumentou ainda mais sua lista de hits globais. Da mesma época ainda são dignas de registro “Ouro” e “Marina No Ar”, além da bela “Muito Diferente”, todas devidamente assíduas nas rádios e programas musicais da época, ainda na fronteira entre a apresentação de playback (Chacrinha e Globo de Ouro) ou ao vivo (Perdidos Na Noite) ou ainda em clipe (Clip-Clip, FM TV).
A história começa a ficar chata a partir de agora. O Brasil mudou, Fernando Collor assumiu a presidência e se valeu de um falso apelo popular – corroborado pela mídia que compactuava com sua presença no governo – que atingiu em cheio a música pop, a programação das redes de televisão e a própria visão sobre o que se fazia por aqui. Um nacionalismo de araque promoveu a ascensão de cantoras baianas, duplas sertanejas, grupos de pagode romântico e, mais tarde, conjuntos de axé. A contrapartida disso foi a acolhida dada a grupos que faziam rock com tinturas musicais regionais, como Chico Science e Mundo Livre S/A, entre muitos outros. Como se fosse um dinossauro após o grande meteoro bater contra a Terra, a produção musical anterior ao período foi imediatamente vista como ultrapassada, sem graça, inadequada e foi deixada de lado. Nem todos os hits de Guilherme Arantes lhe concederam alguma isenção. Mesmo que lançasse discos na década de 1990, nada que foi feito por ele mereceu algum tipo de destaque e as canções não chegaram a ser ouvidas como acontecia antes. O caminho mais rápido para o esquecimento, como sabemos bem.
Vejam bem, nada contra novos artistas terem chance e emplacarem seus sucessos junto ao público. O que é irritante é a anuência de uma mídia sem vergonha, pensando apenas no lucro fácil, sem se importar com nada além disso. Parece que os bons músicos, os compositores pop inteligentes, a preocupação com arranjos, timbres e sons deixaram de ser importantes na hora de gravar um disco. Essa lógica foi dominando a produção musical nacional e, salvo exceções aqui e ali, possibilitou a perpetuação do mau gosto na televisão e rádios pelo país a fora. O golpe final e mais recente foi a quase inviabilidade do rock nacional ser fértil em termos de artistas e bandas com novas ideias e possibilidade de atingir um público maior. O que se vê é a restrição destes à Internet, algo que, se rende certa divulgação entre pessoas, por outro restringe o conhecimento de outras tantas. Nesse terreno crescem o hype, o indie estatal e tantas mutações irritantes entre a música e o ouvido.
E o que o Guilherme Arantes tem a ver com isso? Nada, ainda bem. O sujeito se mudou em 2000 para a Bahia e vive lá, gravando aqui e ali. Vieram registros ao vivo, CD/DVD para a série “Intimidade”, da Som Livre e um novo disco, “Lotus”, ambos gravados em 2007. Além disso, Guilherme vem sendo redescoberto por gente interessante da atual cena musical como Marcelo Jeneci e, principalmente, o cantor e compositor paulistano Fábio Goes, cujos dois discos, “Sol no Escuro” e “O Destino Vestido de Noiva”, são duas grandes exceções à mesmice ou à falsa esperteza. Com influência direta da poesia aranteana e de uma atmosfera anos 80 em bons termos pop, Fábio Goes é um bom cara a ser ouvido. Quanto a Guilherme Arantes, ex-progressivo, hitmaker, pianista, paulista, gente boa e onipresença nas boas listas de gente criminosamente esquecida-redescoberta, que ele continue compondo, teimando em ter bom gosto e, sobretudo, se cuidando bem “pra nunca perder o riso largo e a simpatia estampada no rosto”.
Discografia
Alguns de seus primeiros LPs chegaram a ser relançados em CDs, mas a grande maioria da discografia de Guilherme Arantes precisa ser garimpada em sebos (a série Pop Local recolocou nas lojas em 1995 quase toda discografia do músico nos anos 80). Dois grandes álbuns, “A Cara e a Coragem” (1978) e “Coração Paulista” (1980), foram recuperados por Charlie Gavin, que os remasterizou e os lançou na série Dois Momentos, da Warner. Em 2011 foi a vez de uma nova série, “Sucessos em Dose Dupla”, reunir discos raros de Arantes: A Cara e a Coragem” (1978) foi novamente o escolhido, aqui ao lado do raríssimo “Guilherme Arantes”, de 1982 (que traz a música “O Melhor Vai Começar”). Seu bom disco de estreia, de 1976, foi lançado com capa modificada em 2001, pela Som Livre, e pode ser encontrado com facilidade. “Ronda Noturna”, de 1977, permanece inédito, mas “Guilherme Arantes”, de 1979, foi relançando no começo de 2012. Vale ainda citar os álbuns “Ligação” (de 1983, relançando em 2001 pela Som Livre e que traz canções como “Rolo Compressor” e “Pedacinhos”), “Desperdar”, de 1985 (relançado em CD em 1995 e que conta com os mega-hits “Cheia de Charme” e “Brincar de Viver”) e “Meu Mundo e Nada Mais”, ao vivo duplo gravado em 1990 que reúne 21 hits de Guilherme Arantes (muita gente saberá cantar quase todas as canções) mais um cover de “Hello, Goodbye”, de Lennon e McCartney.
CEL é Carlos Eduardo Lima (siga @celeolimite), historiador, jornalista e fã de música. Conhece Marcelo Costa por carta desde o fim dos anos 90, quando o Scream & Yell era um fanzine escrito por ele e amigos, lá em sua natal Taubaté. Já escreveu no S&Y por um bom tempo, em idas e vindas. Hoje tem certeza de que o mundo como o conhecíamos acabou lá por volta de 1994/95 mas não está conformado com isso.

Nenhum comentário:

Postar um comentário